Pelas decisões do STF em relação aos interinos de Santa Catarina se vê, nitidamente, um odioso jogo de gato e rato proporcionado, de um lado, pelo STF, fiel aplicador da Constituição, e, de outro lado, interinos e políticos francamente dedicados a rasgar a Carta Magna em benefícios próprios.
A proximidade de Assembleias Legislativas com interinos sempre foi muito grande, eis que suas nomeações não raro tinham arrimo político. Isso costumeiramente ensejou inclusões em Constituições Estaduais de normas burladoras da obrigatoriedade do concurso público no período pós-CR/88.
Por isso o STF, sempre de forma unânime, teve que declarar inconstitucionais dispositivos em diversas Constituições Estaduais. Isso se deu, por exemplo, em 1991, na ADI 126/RO (art. 226 da Constituição de Rondônia), em junho de 1995, na ADI 552/RJ (art. 16 do ADCT da Constituição do Rio de Janeiro) e na ADI 690/GO (art. 22 do ADCT da Constituição de Goiás), e em 1998 na ADI 417/ES (arts. 33 e 34 do ADCT da Constituição do Espírito Santo).
Algumas Assembleias Legislativas, observando que ocorria em relação a alguns Estados, acabaram por revogar normas de suas Constituições para evitar a procedência de ADI´s já ajuizadas contra essas. Tudo como um desprezível “jogo de gato e rato”.
O que se relatará a seguir é estarrecedor a quem tenha um mínimo de respeito à moralidade administrativa.
A Assembleia Legislativa de SC, em 1989, trouxe ao mundo jurídico o art. 14 do ADCT da Constituição Catarinense tentando efetivar interinos nos cartórios do Estado, sem concurso público. Tal dispositivo assim dispunha:
“Art. 14. Fica assegurada aos substitutos das serventias, na vacância, a efetivação no cargo de titular, desde que, investidos na forma da lei, estejam em efetivo exercício, pelo prazo de três anos, na mesma serventia, na data da promulgação da Constituição”
Tal norma foi, claro, julgada inconstitucional pelo STF na ADI 363/DF, como a seguir se observa:
Direito Constitucional. Serventias judiciais e extrajudiciais. Concurso público: artigos 37, II, e 236, par. 3., da Constituição Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade do art. 14 do A.D.C.T. da Constituição do Estado de Santa Catarina, de 5.10.1989, que diz: "Fica assegurada aos substitutos das serventias, na vacancia, a efetivação no cargo de titular, desde que, investidos na forma da lei, estejam em efetivo exercício, pelo prazo de tres anos, na mesma serventia, na data da promulgação da Constituição. 1. É inconstitucional esse dispositivo por violar o princípio que exige concurso público de provas ou de provas e titulos, para a investidura em cargo público, como e o caso do Titular de serventias judiciais (art. 37, II, da C.F.), e também para o ingresso na atividade notarial e de registro (art. 236, par. 3.). 2. Precedentes do S.T.F. 3. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente (STF, ADI n. 363/DF, j. em 15.2.1996, DJ de 3.5.1996, p. 13897). Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266315.
Entretanto, interinos e políticos de Santa Catarina maquinaram uma vergonhosa manobra para tentar ludibriar o STF e perpetuar os primeiros à frente dos cartórios: logo após a decisão do STF acima mencionada, em rara celeridade procedimental, a Assembléia Legislativa de Santa Catarina, em 18.6.1996, promulgou a Emenda Constitucional n. 10, contendo apenas um artigo, denominado “artigo único”, com o seguinte teor:
Respeitadas as situações consolidadas, fica suspensa a execução do artigo 14 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição do Estado de Santa Catarina (Disponível em < http://www.alesc.sc.gov.br/portal/legislacao/emendas.php)
Ora, à evidência, sob o pretexto de cumprir a decisão do STF exarada na ADI n.363/SC, a Assembléia Legislativa pretendeu conferir efeitos ex nunc a essa.
Em outras palavras, o reformador constitucional do Estado de SC objetivou dizer que a declaração de inconstitucionalidade do STF não retroagiria, valendo apenas a partir de sua publicação. Vale dizer, não atingiria interinos já nomeados.
Evidentemente o STF foi novamente provocado a se manifestar sobre essa verdadeira aberração jurídica, o que fez em 12.2.2003 na ADI n. 1573/SC declarando sua inconstitucionalidade, também à unanimidade:
DIREITO CONSTITUCIONAL. SERVENTIAS JUDICIAIS E EXTRAJUDICIAIS: EFETIVAÇÃO DE SUBSTITUTOS. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE: ART. 14 DO ADCT DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SANTA CATARINA. RECLAMAÇÃO. 1. O art. 14 do ADCT da Constituição do Estado de Santa Catarina, em sua redação original, estabelecia: "Fica assegurado aos substitutos das serventias, na vacância, a efetivação no cargo de titular, desde que, investidos na forma da lei, estejam em efetivo exercício, pelo prazo de três anos". 2. Esse dispositivo, por votação unânime do Plenário do Supremo Tribunal Federal, foi declarado inconstitucional na ADI nº 363 (DJ 03.05.96, Ementário n º 1.826-01), "por violar o princípio que exige concurso público de provas ou de provas e títulos, para a investidura em cargo público, como é o caso do Titular de serventias judiciais" (art . 37, II, da Constituição Federal), e também para o ingresso na atividade notarial e de registro (art. 236, § 3º). 3. A pretexto de dar cumprimento a essa decisão do S.T.F. , que, por ser declaratória e com eficácia "erga omnes", independia de execução, a Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, em data de 18.06.1996, promulgou a Emenda nº 10 à Constituição Estadual, com este "Artigo único": "Artigo único - Respeitadas as situações consolidadas, fica suspensa a execução do artigo 14 do Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição do Estado de Santa Catarina". 4. Com isso, o que fez a Assembléia Legislativa foi conferir eficácia ao art. 14 do ADCT, em sua redação original, ao menos para amparar as "situações consolidadas" até 18.06.1996, data de sua promulgação. 5. Vale dizer, pretendeu retirar do acórdão do S.T.F., que declarara a inconstitucionalidade do art. 14 do ADCT, em sua redação original, sua eficácia "ex tunc", para só admiti-la a partir de 18.06.1996. 6. E como se valeu de um outro ato normativo, consubstanciado na referida E.C. nº 10/96, podia ela ser impugnada, mediante nova ADI, como foi, não sendo o caso de se examinar o pedido como Reclamação, prevista nos artigos 156 e seguintes do RISTF, como alvitrado na inicial. 7. Assim, a ação foi corretamente distribuída como ADI e como tal é admitida. 8. Ação Direta julgada procedente para a declaração de inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 10, de 18.06.1996, do Estado de Santa Catarina. 9. Decisão unânime. (STF, Pleno, ADI n. 1.573/SC, j. em 12.2.2003, DJ 25.4.2003) (grifos próprios).
Mas, pasmem, interinos e Assembleia Legislativa não se deram por vencidos.
Em 16 de agosto de 2007, quando finalmente o Estado de SC, em observância a determinações do CNJ, realizava concurso público para delegações notariais e de registros, lá veio novamente a Assembléia Legislativa catarinense com outra tentativa de burla do sistema constitucional em favor dos interinamente nomeados.
Em tal data foi publicada a Lei Estadual n. 14.083/07, que, sob o pretexto de regulamentar concursos públicos para ingresso na atividade notarial e de registros públicos, em seu final, já no quase despercebido capítulo das “disposições finais”, traziam três pequenos dispositivos (arts. 19, 20 e 21) com os seguintes conteúdos:
Art. 19. Os concursos públicos em andamento, cujos editais de abertura, estiverem em discordância com o disposto nesta Lei e demais dispositivos legais, referentes à matéria, estão suspensos até sua plena adaptação ao ordenamento legal sob pena de nulidade.
Art. 20. São convalidados, para todos os fins e efeitos legais, os atos de outorga de titularidade de delegação para serviços ou serventias notariais e de registros, conferidos pelo Presidente do Tribunal de Justiça, realizados desde a vigência da atual Constituição Federal até a presente data.
Art. 21. São considerados titulares de delegação de serventias notariais ou de registro exercidas em caráter privado, os titulares das serventias extrajudiciais legalmente nomeados até 21 de novembro de 1994.
(Disponível em < http://200.192.66.20/ALESC/PesquisaDocumentos.asp>)
Veja-se que o intuito legislativo foi, em verdade, simplesmente suspender o concurso então em andamento e efetivar, sem concurso, pelo menos os interinos que tivessem sido nomeados até 21.11.1994, exatamente a data em que entrou em vigor a Lei n. 8.935/94.
Contra os três dispositivos a OAB ajuizou a ADI n. 3.978/SC, tendo o STF declarado suas inconstitucionalidades, por unanimidade:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. IMPUGNAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 19, 20 E 21 DA LEI N. 14.083 DO ESTADO DE SANTA CATARINA. REGRAS GERAIS CONCERNENTES AOS CONCURSOS PÚBLICOS PARA INGRESSO E REMOÇÃO NA ATIVIDADE NOTARIAL E DE REGISTRO. VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 37, INCISO II, E NO ARTIGO 236, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Os preceitos da Lei n. 14.083 de Santa Catarina violam o disposto no artigo 236 da Constituição de 1988, que estabelece que o ingresso nas atividades notarial e de registro será efetuado por meio de concurso público de provas e títulos. 2. O artigo 21 da Lei n. 14.083 permitiria que os substitutos das serventias extrajudiciais nomeados até 21 de novembro de 1994 fossem elevados à condição de titular, sem aprovação em concurso. 3. Esta Corte tem entendido que atos normativos concernentes ao provimento de cargos mediante a elevação de substitutos à titularidade dos cartórios, sem a devida aprovação em concurso público afrontam a Constituição do Brasil. Precedentes --- artigo 37, inciso II, e artigo 236, § 3º, da Constituição do Brasil. 4. Os artigos 20 e 21 da Lei n. 14.083 violam o texto da Constituição de 1.988. Ato normativo estadual não pode subverter o procedimento de acesso aos cargos notariais, que, nos termos do disposto na Constituição do Brasil, dar-se-á por meio de concurso público. 5. A inconstitucionalidade dos artigos 20 e 21 impõe a procedência do pedido no tocante ao artigo 19. 6. O provimento de cargos públicos mediante concursos visa a materializar princípios constitucionais aos quais está sujeita a Administração, qual o da legalidade, da moralidade, da impessoalidade. 7. Pedido julgado procedente para declarar inconstitucionais os artigos 19, 20 e 21 da Lei n. 14.083 do Estado de Santa Catarina.
(STF, Pleno, ADI n. 3.978/SC, j. em 21.10.2009, DJ-E 232 de 11.12.2009)
O vídeo deste julgamento está disponível no youtube e é bastante recomendado àqueles que querem ver pessoalmente as reações enfáticas dos Ministros contra a burla ao art. 236, §3º, da CR/88: http://www.youtube.com/watch?v=l1YKVQ6cD6E .
Em tal ação, a Advocacia-Geral da União – AGU – e a Procuradoria-Geral da República manifestaram-se pela inconstitucionalidade das pretendidas efetivações. Não houve nos autos, pois, com exceção dos frágeis argumentos do Estado de Santa Catarina, qualquer discordância quanto à inconstitucionalidade da efetivação de interinos sem concurso público, como, aliás, já firmado por consolidada jurisprudência do STF
No início de 2010, após toda essa batalha e muita luta de interinos para “não largarem o osso”, candidatos devidamente aprovados em concurso público iniciado em 2007, finalmente receberam as outorgas para o exercício dos serviços notariais e de registros públicos de Santa Catarina.
O feudalismo foi finalmente extirpado dos cartórios de notas e registros públicos de Santa Catarina.
Entretanto, engana-se quem, após saber de todos esses fatos e a incrível má-fé da comunhão entre interinos e políticos catarinenses, imaginou que, finalmente, esses teriam dado "o braço a torcer" à Constituição Cidadã.
É que, até inacreditavelmente, os interinos formaram uma associação denominada "Associação dos Efetivos pelo Artigo 14 do ADCT da Constituição de Santa Catarina (ASSEA/14/SC) e, em agosto de 2010, propuseram Pedido de Controle Administrativo no CNJ objetivando anular o concurso público acima referido (PCA n. 0005405-95.2010.2.00.0000).
É até inacreditável o quanto essas pessoas resistem, de todas as formas mais criativas possíveis, a cederem à cultura republicana. Em vez de estudarem para assumirem as funções como qualquer do povo pode fazer, preferem promover chicanas processuais para tentar ludibriar a Constituição.
Para coibir tantas manobras processuais procastinatórias que apenas trazem insegurança jurídica a todos (principalmente em razão de algumas esdrúxulas liminares concedidas em Juízos Estaduais), é preciso que o STF publique uma SÚMULA VINCULANTE já!
Caso contrário, todos os concursos a serem realizados nos Estados por determinação do CNJ estarão fadados a se arrastarem por prazos infindáveis em razão de táticas processuais de interinos que só trazem incredibilidade ao Judiciário, que, apesar de já lidar com o tema desde o início da década de 90, não consegue colocar uma "pá de cal" de vez por todas em favor do cumprimento do art. 236, §3o, da CR/88.